Desde 2018 o Brasil permite que pessoas trans alterem o nome
Transexuais se mobilizam para superar barreiras e retificar documentos
Desde 2018, pessoas transexuais podem buscar cartórios de registro civil no país para corrigir seu primeiro nome e seu gênero na certidão de nascimento ou casamento e, a partir daí, modificar os outros documentos pessoais.
Quase quatro anos após essa conquista, no entanto, ativistas transexuais e defensores dos direitos humanos ouvidos pela Agência Brasil para o Dia da Visibilidade Trans, celebrado hoje (29), apontam obstáculos à efetivação desse direito e se mobilizam para que a população tenha acesso a documentos que respeitem sua identidade de gênero.
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Para a presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson, as barreiras já começam nos custos de obtenção das certidões necessárias para realizar o pedido no cartório, que incluem gastos com o deslocamento para ir aos órgãos solicitá-las.
Superada essa etapa, a retificação do registro civil no cartório também requer o pagamento de taxas que variam de estado para estado. Keila explica que a informação de que é possível solicitar gratuidade nem sempre chega à população.
“A burocracia existente e a não gratuidade são um grande empecilho. Estou falando de uma população que vive em subemprego, não tem recursos muitas vezes, e que tem que pagar pelas certidões. Para muitas pessoas pode parecer valores irrisórios, mas para as pessoas trans é significativo e muitas não têm como pagar”.
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Keila foi uma das ativistas trans que estiveram no Congresso Nacional, em 29 de janeiro de 2004, para um ato por respeito que foi considerado histórico e definiu a data do Dia Nacional da Visibilidade Trans.
A presidente da Antra recomenda que pessoas trans que não saibam como pedir a correção de seus documentos procurem defensorias públicas e organizações de defesas dos direitos humanos de sua região para buscar orientações. Além disso, ela indica que há guias disponíveis na internet, como no próprio site da associação.
“A pessoa vai vivendo sem se identificar e passa por dificuldades, por violações de direito, por constrangimento público quando precisar apresentar o documento. E ela vai continuar sofrendo essas violências que ela sofre porque tem uma burocracia nesse processo que precisa ser vencida”, afirma Keila Simpson.
Regras
A retificação de nome e gênero nos cartórios segue as regras do Provimento n.º 73, publicado em 2018 pelo Conselho Nacional de Justiça. Além de certidão de nascimento, RG, CPF, título de eleitor e outros documentos de identificação, são exigidas certidões da Justiça Eleitoral e da Justiça do Trabalho, certidões dos distribuidores cível e criminal do local de residência, certidão de execução criminal, certidão dos tabelionatos de protestos e certidão da Justiça Militar, se for o caso.
Reunidos todos esses documentos, a pessoa trans pode ir ao cartório solicitar que seja corrigido o primeiro nome e/ou o gênero em sua certidão de nascimento. Caso seja casada, a pessoa precisa do consentimento do cônjuge para alterar a certidão de casamento.
O provimento do CNJ só se tornou possível depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2018, o direito de as pessoas trans corrigirem seus documentos em cartório sem comprovar qualquer tipo de cirurgia de redesignação sexual.
Espera e humilhação
Presidente do Grupo pela Vidda, Maria Eduarda Aguiar lembra que a retificação de seus documentos, obtida antes da decisão do STF e do provimento do CNJ, precisou ser realizada por via judicial.
“Eu só consegui a retificação civil depois do laudo de um psiquiatra. Teve que uma outra pessoa dizer quem eu sou. Hoje, demora 90 dias, mas o meu processo demorou três anos. E houve pessoas que esperaram mais, até seis anos”, conta ela, que lembra que o processo exigia a comprovação da cirurgia de redesignação sexual, de tratamentos hormonais e ainda dependia da aprovação do juiz que fosse responsável pelo caso.
No tempo de espera por seus documentos, Maria Eduarda viveu situações que classifica como humilhantes, em que era acusada de inventar um nome que não podia provar que era o seu.
“Só quem vive isso sabe o que é. É uma tortura ter que, a toda hora, estar se explicando. Você vai a um lugar e tem que explicar e pedir, pelo amor de Deus, para a pessoa te tratar no nome social. Isso é humilhante, não há dignidade nisso. A retificação dá cidadania à pessoa, porque ela não precisa ficar se explicando, ela apresenta o documento e acabou”.
Como ativista e advogada, Maria Eduarda decidiu ajudar outras pessoas trans a obter a adequação de seus documentos e evitar esses constrangimentos. O Grupo pela Vidda realizou um mutirão por meio do projeto TransVida, entre outubro e dezembro de 2021, para orientar pessoas trans na obtenção das certidões e no pedido de retificação. Ao acompanhar esses casos, ela conta ter se deparado com barreiras que vão além da burocracia.
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“Vimos cartórios exigindo documentos que não estão previstos, ou colocando em exigência documentos que já foram apresentados”, conta ela, que exemplifica com um caso em que o cartório exigiu certidões também no nome social do solicitante, o que não está previsto pelo CNJ.
A advogada relata ainda mais de um caso em que o requerente não recebeu um protocolo comprovando que realizou o pedido. “A pessoa acaba tendo que refazer o pedido”.
O mutirão conseguiu realizar 70 atendimentos no Rio de Janeiro, e, em alguns casos, foi preciso acompanhar o requerente no cartório para questionar esses obstáculos. “Minha luta é prestar um serviço para que a decisão do STF seja efetivada. E a gente tem conseguido bons resultados”.
Uma das histórias que Maria Eduarda começou a acompanhar antes mesmo do mutirão foi a de Thaísa Correia, de 31 anos. A auxiliar de cabeleireira fez sua primeira tentativa de retificação dos documentos em 2014, ainda por via judicial, mas o processo caminhou a passos lentos até que ela decidiu pedir ajuda à advogada, já em 2020.
Thaísa Correia levou sete anos para conseguir trocar o nome em seus documentos – Arquivo Pessoal/ Thaísa Correia
No caso de Thaísa, a principal dificuldade foi fazer com que o cartório de sua cidade natal, em Alagoas, enviasse a certidão para a retificação no Rio de Janeiro. “Como eu não tinha dinheiro para ir lá, demorou muito. Se eu tivesse, acredito que teria sido muito mais rápido”, conta ela, que só conseguiu concluir o processo no fim de 2021.
“Muitas trans ainda não têm nem ciência de por onde começar. Tive auxilio da Duda [Maria Eduarda] e de outra amiga que já fizeram a retificação, e por conta delas duas consegui galgar isso. Para uma trans leiga é muito difícil”.
Nos quase sete anos em que viveu à espera de ter sua identidade de gênero reconhecida nos documentos, Thaísa conta que perdeu oportunidades de trabalho e enfrentou constrangimentos ao buscar serviços e apresentar documentos com o nome que recebeu ao nascer.
“Mesmo que eu mandasse o currículo só com o nome de Thaísa, na hora de ser chamada eu tinha que apresentar os documentos. Na primeira leitura, era lida como mulher, mas aí vinha o constrangimento”, lembra ela. “Quando recebi a certidão, o sentimento foi de libertação, porque depois de tanta luta finalmente respeitaram minha identidade. É um alívio”.
Mutirões
Diante das dificuldades e custos que o processo pode impor, cada vez mais mutirões têm ocorrido para oferecer alternativas à população trans que não tem recursos para solicitar a retificação.
No Rio de Janeiro, a Defensoria Pública estadual, em parceria com a Justiça Itinerante e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), garantiu 96 retificações de documentos em um único dia, em 26 de novembro.
A coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis), defensora Mirela Assad, conta que os interessados em obter a retificação encontram um processo mais ágil no mutirão, porque a presença da Justiça Itinerante permite que, em um único dia, os atendidos já saiam com uma sentença que pode ser levada no cartório para alteração do nome e gênero.
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“A diferença é que em um único dia a pessoa se qualifica. Ela não precisa ficar batendo perna para conseguir certidões, o que para pessoas pobres é uma coisa custosa”, explica a coordenadora do Nudiversis
Esse modelo também permite o atendimento a pessoas não-binárias, que ainda dependem de decisões judiciais para ter o gênero reconhecido em seus documentos. Entre as retificações realizadas na última edição do mutirão, 47 foram de pessoas trans não-binárias, que saíram do mutirão com uma sentença judicial obrigando os cartórios a corrigirem o gênero de seus registros civis para não-binárie, com grafia em linguagem neutra.
“Quando fizemos a petição e o juiz deu a sentença, isso foi a primeira vitória, porque saiu uma sentença por escrito de que o gênero deveria ser retificado para não-binárie, em linguagem neutra. Ficamos apreensivos se os cartórios do registro civil iriam cumprir, mas para a nossa felicidade, eles estão cumprindo”, conta a defensora.
Um novo mutirão está marcado para o dia 18 de fevereiro, se o cenário epidemiológico da covid-19 permitir, pondera a defensora. Mirela Assad conta que, por causa da pandemia, optou-se por realizar o mutirão no campus da Fiocruz em Manguinhos, em um local aberto, onde o ônibus da Justiça Itinerante pode estacionar.
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