O ser humano é movido a desafios, assim sendo, um downwind de longa distancia em um dia de kite é um bom teste para saber qual é o limite que o nosso corpo aguenta. Eu juntamente com mais 3 amigos resolvemos testar nossos limites fazendo um downwind de mais de 300 kms em um dia trilhando caminhos na nossa maratona kitesurf.
Nós já tínhamos feito alguns downwinds de longa distância antes, do Cumbuco a Jeri. Fizemos o primeiro em setembro de 2017, nessa época não tínhamos notícia de alguém que já tivesse tentado isso antes, e não sabíamos se conseguiríamos ou não, mas conseguimos e sendo assim decidimos aumentar o grau da dificuldade, com o plano inicial de ir do Cumbuco até Barra Grande, no Piauí.
OS AVENTUREIROS DO OCEANO
Nessa empreitada éramos 4 kitesurfistas, eu, o Nilsinho, o Ericsson Fox e o Guldemar, e a minha esposa Bel era a motorista do carro de apoio. O dia era 27 de outubro de 2018, chegamos no Kitecabana Cumbuco as 3:45 am. Montamos os kites, e por volta das 4:15 da manhã estávamos decolando, escuro ainda rumo ao nosso objetivo.
Nós tínhamos objetivos diferentes, eu usei uma prancha de kitewave strapless nessa trip, e o meu objetivo era chegar no Farol de Camocim, a 318 kms de distância, e os outros 3 amigos foram com pranchas bidirecionais, que andam mais rápido pelo fato do velejador estar com o pé preso em pads acolchoados iam até Barra Grande, e eu vou em uma prancha de surf sem alças quicando em cima dela por 11 horas seguidas e ando mais devagar.
A LARGADA NA MARATONA DE KITESURF
Quando saímos cada um adotou a sua estratégia para andar mais rápido, os amigos com as pranchas bidirecionais que tem quilhas pequenas e podem andar numa lamina de 5 cms de água assim que passaram o porto do Pecém foram logo para a beira, acompanhando as curvas do litoral pela praia.
Eu com uma prancha de surf com quilhas maiores não consigo andar rápido na beira, e por isso adotei uma abordagem diferente dos amigos das bidirecionais, cortei caminho por alto mar, andando em linha reta e evitando as curvas do litoral que aumentam um pouco a distancia percorrida.
A ESTRATÉGIA DO VELEJO DE LONGA DISTÂNCIA
Nossa maratona kitesurf não para! Assim que passei o Porto do Pecém tirei uma reta cortando a Taíba, Paracuru e Lagoinha por fora. O maior ganho em distância é entre o Paracuru e a Lagoinha, que faz uma baia imensa no litoral, que eu cortei pelo alto mar. depois do Cumbuco, só cheguei perto da praia no Guagirú, antes de Flecheiras, e desse ponto em diante naveguei mais perto da praia.
Essa estratégia mostrou ser proveitosa para mim, pois cheguei em Almofala 10 minutos depois do primeiro que chegou, que foi o Nilsinho. Almofala foi a única parada para descanso e hidratação que fizemos, a Bel nossa motorista do resgate já estava lá nos esperando, com a logística completa, água, frutas e energéticos.
Os outros dois amigos chegaram depois, quando eu e Nilsinho Já estávamos decolando para prosseguir viagem. O Gugu fez a parada e seguiu depois, mas o Ericsson Fox não suportou o desgaste desses primeiros 180 kms e desistiu da empreitada, entrando no carro do resgate.
DEPOIS DE 180 KMS A SUPERAÇÃO NA ETAPA FINAL
Essa segunda etapa da trip foi muito dura para mim, pude ver o quanto o Nilsinho andava mais rápido do que eu, pois saímos juntos de Almofala e logo ele sumiu na minha frente, antes de chegar nos currais das arpoeiras eu já não via mais o kite dele no ar na minha frente.
Esse tipo de velejo onde temos que chegar longe o mais rápido possível é muito cansativo, e exige muito preparo físico e mental. Imaginem passar 11 horas andando rápido e deslizando no mar com todas as suas ondulações e balanços, isso exige muito dos músculos e dos joelhos, que sofre muito e recebe bastante impacto das ondulações do mar.
Assim sendo a gente tem muito tempo pra pensar, várias vezes eu me perguntava o que eu estava fazendo ali. Lembro de cair e passar algum tempo deitado boiando, relaxando a musculatura, e a sensação de prazer era indescritível, a ponto de eu quase desistir. Mas como eu estava em um local no meio do nada, e um resgate seria muito mais doloroso, arranjava forças no fundo da alma e seguia em frente.
A CHEGADA NO FAROL DE CAMOCIM DEPOIS DE 318 KMS VELEJADOS
Enfim, depois de 11 horas de velejo e 318 kms percorridos cheguei ao Farol de Camocim completamente exausto as 15:30 pm. Mal tinha forças para caminhar na areia e guardar o kite, foi um esforço muito grande nessa aventura que ainda não tinha terminado. Que maratona! Que dia!
O Nilsinho partiu para Barra Grande que fica a 60 kms do farol de Camocim, o Ericsson Fox que havia desistido da empreitada em Almofala montou o kite novamente e seguiu junto com o Nilsinho para Barra Grande. Eu não tinha mais condições físicas para continuar, esperamos o Gugu chegar em Camocim, o que aconteceu as 17:00 pm e saímos para resgatar o Nilsinho e o Ericsson Fox em Barra Grande.
A FALHA DO EQUIPAMENTO DO NILSINHO
Mas o Nilsinho não teve sorte e foi surpreendido com a quebra da linha da sua barra, o que impossibilitou ele de chegar no destino, e o Ericsson Fox completou a travessia, provando ser possível velejar do Cumbuco no Ceará a Barra Grande no Piauí em apenas um dia, basta ter disposição.
Para dificultar ainda mais a situação o nosso amigo Nilsinho ainda perdeu a prancha na Barra dos Remédios quando a linha da barra quebrou, e procurou Refúgio na casa de pescadores locais até ser resgatado por nós. Ele conseguiu sinal de celular e enviou a nós a sua localização, e conseguimos resgatar ele tarde da noite.
EM BUSCA DA PRANCHA PERDIDA
Após o resgate, Nilsinho resolveu procurar a sua prancha a noite na beira da praia, era lua cheia e passamos a noite e parte da madrugada nessa busca. Não encontramos a prancha e tivemos que dormir dentro do carro na praia. Imaginem o sufoco para dormir 5 pessoas sentadas dentro de um carro. Para mim era praticamente impossível depois de velejar 318 kms em 11 horas seguidas, apesar do cansaço era muito difícil dormir sentado num carro cheio.
A SURPRESA AO BUSCAR UM LUGAR PARA DORMIR
Eu não aguentei tentar dormir sentado e saí do carro em busca de um lugar mais confortável para descansar, por volta de 1:30 am, estava muito cansado e achei um barco na areia e me deitei nele. Estava lá tentando dormir, quando fui surpreendido por um pescador local que veio ao meu encontro e me ofereceu uma rede para dormir na sua residência, uma modesta choupana de palha sem energia na beira da praia.
Para mim, naquele momento era como uma mansão luxuosa aquela humilde residência, o Seu Zé, nome do pescador gente boa que me acolheu trouxe uma rede embalada em um saco plástico, limpinha e cheirosa, armou para mim e eu consegui ter algumas horas de sono, graças a bondade de um humilde pescador que eu nunca tinha visto antes e nem vi outra vez até hoje.
Agradeço a Deus por sempre colocar as pessoas certas no meu caminho e por ter saúde de realizar uma aventura assim com 56 anos na época. O kitesurf nos mantém jovens de corpo e alma, é literalmente a fonte da juventude.