Márcia Catunda
Coluna + Emprego

Precisamos parar de justificar e normalizar o sofrimento no trabalho

Segundo André Fusco, médico-psicanalista, consultor e especialista em saúde mental no trabalho, vivemos uma crise silenciosa nas empresas. Apesar do alerta com o aumento no número de afastamentos, o maior da última década, segundo o Ministério da Previdência Social, a saúde mental ainda é tratada majoritariamente como uma responsabilidade individual, colocando o foco na pessoa adoecida, em vez do modo como trabalhamos.

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13 de maio de 2025
Márcia Catunda

Estamos doentes, mas não admitimos. O recorde de afastamentos por ansiedade e depressão na última década, com mais de 470 mil licenças médicas em 2024, segundo dados do Ministério da Previdência Social, pode dar a impressão de que o tema está sendo mais tratado. Felizmente, temos visto alguns avanços, como a atualização da NR-1, que tornará obrigatória a avaliação de riscos psicossociais nas empresas a partir de maio. Ainda assim, a questão continua sendo abordada majoritariamente em nível individual, com foco na responsabilização da pessoa adoecida.

 

Sem grandes mudanças estruturais, nos vemos normalizando o sofrimento do trabalho para poder sobreviver e não ficar à margem da sociedade.

 

Imagine a icônica imagem dos operários almoçando sobre uma viga suspensa em Nova York, com as pernas balançando a dezenas de metros do chão. Mesmo com o risco iminente de uma queda, a naturalização da cena dá a entender que “sempre foi assim” e que “nunca deu problema”. Esse “sempre foi assim” é mais do que um comentário casual — é o que chamamos, na Psicanálise, de Defesa Psíquica. É a maneira que encontramos para dar conta de um sofrimento que, se encarado de frente, seria insuportável.

Foto: ‘Lunch atop a skyscraper’ (‘Almoço no topo de um arranha-céu’), de Charles C. Ebbets.

 

Diante de uma realidade que nos ameaça ou causa sofrimento, como o risco de queda, no caso do trabalhador em altura, ou o risco de adoecer mentalmente, no caso de qualquer profissional sobrecarregado, nosso psiquismo mobiliza estratégias de recusa e virilidade para seguir funcionando. Negamos o risco, reforçamos ideias como “comigo não acontece” ou “eu aguento mais que os outros”, e assim encontramos um modo de conviver com o que, na verdade, nos amedronta.

 

No ambiente de trabalho, essas defesas se multiplicam e moldam a forma como lidamos ou não lidamos  com o sofrimento. Muitas vezes, para lidar com o sofrimento, precisamos fingir que ele não existe ou criar valores e crenças que deem sentido a ele. Criamos uma cultura onde exaustão é virtude, adoecer é fraqueza e pedir ajuda é quase um ato de traição aos valores da produtividade. O “bom trabalhador” é aquele que, segundo os valores enraizados na sociedade, suporta tudo sem reclamar, nunca demonstra fragilidade e está sempre pronto para entregar mais, mesmo à custa da própria saúde. Como os médicos plantonistas, por exemplo, que se vangloriam por abdicar do sono para emendar turnos de 24 horas. E é justamente por isso que precisamos, com urgência, repensar as crenças que sustentam essa lógica.

 

Esse equilíbrio emocional, baseado em negação e ilusões de invulnerabilidade, é frágil. Ele desmorona diante da queda de um colega ou do adoecimento de alguém próximo. A vítima revela o risco que todos querem esquecer. E, para restaurar a ilusão de segurança, recorremos a um mecanismo comum: responsabilizamos a vítima.

 

Caiu porque bebeu. Adoeceu porque não soube lidar com pressão. Faltou meditação, faltou equilíbrio entre vida pessoal e profissional, faltou autocuidado. Transformamos o sofrimento em falha individual, quando ele é, muitas vezes, consequência de um sistema doentio.

 

Essa lógica é cruel. Ela transforma o adoecido em culpado. E pior: o próprio adoecido internaliza essa culpa. Acredita que não fez o suficiente para ser forte. E, assim, o tabu cresce. Para cada atestado entregue, existem muitos outros profissionais silenciosamente sofrendo, disfarçando sintomas como insônia, perda de memória e dificuldade de concentração para evitar represálias ou olhares desconfiados.

 

A performance cai, o sofrimento aumenta, e, quando finalmente buscam ajuda, a resposta institucional muitas vezes é a desconfiança ou, nos casos mais extremos, a criminalização do adoecimento.

 

Como consultor em saúde mental corporativa, não é raro ser chamado por empresas para “verificar” atestados médicos ou avaliar se um colaborador está realmente doente. O que encontro, invariavelmente, são profissionais constrangidos e médicos preocupados com a integridade de seus pacientes. O problema não está na legitimidade da doença, mas no incômodo que o sofrimento alheio causa em quem ainda tenta manter sua própria defesa psíquica intacta.

Quando entendemos esse processo de responsabilização das vítimas e a construção desse tabu, ou seja, das razões pelas quais o adoecimento mental é visto como algo inconveniente, conseguimos reduzir o ímpeto de investigar e punir. E, finalmente, nos tornamos mais propensos a acolher quem revela sua dor.

 

Segundo a OMS, o Brasil lidera o ranking mundial de transtornos de ansiedade. O burnout já é considerado doença ocupacional e afeta até 40% da população economicamente ativa, conforme a Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT). E, mesmo assim, seguimos tratando saúde mental como se fosse uma questão de escolha ou força de vontade.

 

A romantização da resiliência e da superação individual é sedutora. Meditação, yoga, higiene do sono e equilíbrio entre vida pessoal e profissional são, sim, ferramentas importantes. Mas elas não podem ser a resposta principal a um problema estrutural. Não adianta oferecer cursos de cuidado com a saúde mental e felicidade no trabalho quando a cultura organizacional é tóxica. Não adianta treinar o colaborador para suportar o insuportável.

 

Precisamos parar de normalizar o sofrimento e começar a questionar o modelo de trabalho que o produz. Repensar as metas inalcançáveis, o ranking, o estímulo pela competição, o excesso de controle, as jornadas exaustivas, a falta de reconhecimento e a lógica produtivista herdada do fordismo. Assim como já criminalizamos o trabalho infantil, que um dia foi motivo de orgulho para muitas famílias , está na hora de reavaliar outras crenças profundamente enraizadas que nos fazem acreditar que um bom trabalhador é aquele que aguenta tudo calado.

 

Falar de saúde mental no trabalho não pode mais ser um tabu. Precisa ser um direito. Precisamos criar ambientes onde não seja necessário adoecer para finalmente ser ouvido. Onde acolher substitua punir. E onde o bem-estar deixe de ser um privilégio e passe a ser uma prioridade. É só com essa mudança de perspectiva que poderemos, de fato, criar ambientes mais humanos, saudáveis e sustentáveis.

 

A grande ironia é que vivemos isso em nome da produtividade e eficiência, mas evoluir a organização é mais eficiente e produtivo!

 

A pergunta que fica é: até quando lideranças e RHs vão continuar tratando sofrimento como falta de preparo, em vez de consequência direta da forma como estamos organizando o trabalho?

 

Sobre o Dr. André Fusco

Dr. André Fusco é médico-psicanalista e consultor de saúde mental para empresas. Graduado pela USP e com mais de 20 anos de experiência, é um dos principais embaixadores do conceito de Ergonomia Mental no Brasil. Por meio da Psicodinâmica do Trabalho, desenvolveu uma metodologia para diagnosticar e identificar as causas de problemas relacionados à saúde mental, além de propor soluções eficazes para desafios complexos nessa área.

Mais informações em: https://andrefusco.com.br/

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