A “estreia” da vacina contra a covid-19 Sputnik V fora da Rússia será na Argentina. O país sul-americano já recebeu as primeiras 300 mil doses do imunizante e começa as aplicações na terça-feira (27).
O governo argentino concedeu autorização de uso emergencial para a Sputnik V, uma vacina que gerou críticas na comunidade científica desde que o Ministério da Saúde russo a liberou, em 11 de agosto.
Apresentada desde então sob o slogan “a primeira vacina de covid-19 registrada”, a Sputnik V se tornou o carro-chefe da propaganda externa do governo da Rússia.
A vacina foi desenvolvida pelo Instituto Nacional de Pesquisa de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya, ligado ao governo, e financiada pelo RDIF (Fundo Russo de Investimento Direto), o fundo soberano do país.
Enquanto os testes em humanos de outras vacinas já haviam sido apresentados ao mundo, como era o caso da AstraZeneca/Oxford, Pfizer/BioNTech, Moderna, entre outras, a Rússia surpreendeu ao dizer, em 1º de agosto, que havia concluído as fases 1 e 2 de ensaios clínicos.
Antes mesmo de iniciar a fase 3, considerada a mais importante, por abranger um número maior de participantes, a Rússia já havia registrado a vacina para uso.
Em 25 de agosto, tiveram início os ensaios da fase 3, com 40 mil voluntários na Rússia e em Belarus.
A vacinação dos russos começou sem a conclusão desta etapa, em 5 de dezembro, para profissionais de saúde, assistentes sociais e professores.
Todos os avanços apresentados em relação à Sputnik V eram vistos com preocupação pela comunidade científica.
“Esta é uma decisão imprudente e tola. A vacinação em massa com uma vacina testada incorretamente é antiética. Qualquer problema com a campanha de vacinação russa seria desastroso tanto por seus efeitos negativos na saúde, mas também porque iria atrasar ainda mais a aceitação de vacinas pela população”, disse François Balloux, geneticista da University College London, em comunicado distribuído pelo Science Media Centre do Reino Unido.
O porta-voz da OMS (Organização Mundial da Saúde), Tarik Jasarevic, também manifestou cautela em relação à rapidez com que a Sputnik V foi disponibilizada à população.
“A pré-qualificação de qualquer vacina inclui a revisão e avaliação rigorosa de todos os dados de segurança e eficácia exigidos. Não se pode usar uma vacina ou medicamentos sem passar por todas essas etapas, tendo cumprido todas essas etapas.”
Alheio às críticas, o governo de Vladimir Putin continuou com seus planos de tornar a Sputnik V uma vacina global.
Um dos trunfos dele é o preço do imunizante, menos de US$ 10 por dose (R$ 52), enquanto imunizantes da Pfizer e Moderna custam entre US$ 20 e US$ 37 (R$ 104 e R$ 193), respectivamente.
Além disso, possui uma forma liofilizada (seca) que permite o armazenamento a temperaturas entre 2°C e 8°C.
Putin chegou a falar que uma das filhas dele já havia recebido a vacina nas fases iniciais sem apresentar efeitos adversos significativos.
Na semana passada, o Ministério da Saúde da Rússia liberou a vacina para pessoas acima de 60 anos, o que deve permitir que o próprio presidente, que tem 68 anos, possa ser imunizado.
91,4% de eficácia
A vacina leva o nome do primeiro satélite soviético, enviado ao espaço em 1957. O “V” é de vacina.
Em 14 de dezembro, os resultados da terceira e última análise do ponto de controle dos dados obtidos 21 dias após a aplicação da primeira dose nos voluntários mostraram taxa de eficácia de 91,4%, segundo o governo russo.
Foram analisados dados de 22.714 voluntários que receberam a vacina ou placebo.
Além disso, os desenvolvedores afirmam que durante os estudos nenhuma pessoa vacina acusou formas graves de covid-19.
“Houve 20 casos graves de infecção por coronavírus entre os casos confirmados no grupo do placebo e nenhum caso grave no grupo da vacina”, disseram.
Tecnologia
A Sputnik V é feita a partir de uma tecnologia nova, que utiliza adenovírus — vírus causadores de resfriado comum.
No caso da vacina russa, a primeira e a segunda dose utilizam adenovírus diferentes, algo exclusivo do Instituto Gamaleya.
Por meio de engenharia genética, são removidos os genes de reprodução viral dos adenovírus, ou seja, ele não vai causar resfriado, será utilizado apenas como “meio de transporte”.
Dentro destes adenovírus são colocados genes codificando a proteína S do coronavírus (SARS-CoV-2). Estas proteínas são as que ficam na coroa do vírus causador da covid-19 e se ligam aos receptores no corpo humano.
Uma vez inoculado, o adenovírus com o gene do coronavírus induz uma resposta imunológica no corpo humano.
Após 21 dias, ocorre a segunda vacinação, com outro tipo de adenovírus, mas o mesmo material genético do SARS-CoV-2. Então, segundo os dados russos, ocorre uma imunidade ainda mais forte e duradoura.
O método é semelhante ao usado pela Universidade de Oxford no desenvolvimento da vacina contra covid-19.
Recentemente, a AstraZeneca, detentora dos direitos comerciais do imunizante, anunciou uma parceria com o Instituto Gamaleya para estudar uma combinação das duas vacinas.
Negociações
Além da Argentina, que encomendou 10 milhões de doses da Sputnik V, o governo de Belarus também reservou um lote inicial de 100 mil doses para a campanha de vacinação, prevista para iniciar em janeiro.
No Brasil, a farmacêutica União Química firmou um acordo com o Instituto Gamaleya para a produção da Sputnik V no Brasil e na América Latina.
No entanto, o pedido de registro do imunizante ainda não foi apresentado à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Segundo o governo russo, México, Filipinas, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Indonésia e Índia apresentaram interesse na compra da vacina.