No contexto de emergência da Covid- 19, os aplicativos apresentaram-se como um espaço privilegiado de produção de um tipo peculiar de subjetividade. Muito antes de sentirmos os efeitos do vírus nos continentes, os indivíduos já vinham experimentando mudanças significativas em todos os domínios da vida social.
O indivíduo contemporâneo é convocado a investir em suas aptidões e expertises, buscando um público interessado em consumir sua oferta laboral. Deflagrou-se um tempo de mediação da máquina em diferentes formas de sociabilidade. Os padrões de comunicação foram sensivelmente alterados. Expressões como “selfies”, “nudes”, “date”, “block”, “crush” sinalizavam que os indivíduos estavam experimentando mudanças que nos permitem falar de uma “nova era”.
O uso desenfreado de celulares e, consequentemente, de aplicativos, a mediarem interações entre as pessoas, é disparador de uma atitude classificada pelo filósofo Paul B. Preciado de “enclausuramento voluntário”.
Os aplicativos de relacionamento anteciparam formas de isolamento voluntário. A criação de aplicativos capazes de congregar, em uma única plataforma, aspectos como entretenimento, ludicidade, interatividade e fácil manuseio, integra uma, dentre muitas estratégias acionadas por essas empresas para manter os usuários permanentemente conectados. Como as conversas são previsíveis, a maioria dos usuários interagem de uma forma automática, oscilando entre interesse e recusa. A previsibilidade das conversas alia-se à fantasia, acionada em contextos marcados pela virtualização do corpo.
Os apps de relacionamento reproduzem, de forma peculiar, a lógica excludente do mercado. Os aplicativos, assim como o mercado, são regidos pela desigualdade de oportunidades, o que significa dizer que nessas interações muitos permanecem invisíveis na dinâmica do jogo, enquanto outros usufruem do encontro entre oferta e demanda. A moeda de troca, nesses espaços virtuais, é, justamente, a exposição do corpo, explorando ângulos e situações que ampliam suas possibilidades de oferta, em meio a uma acirrada disputa, neste jogo de demandas diversificadas, em função de gostos e preferências. Nunca é demais lembrar que um “block”, um “match”, uma “curtida”, um “biscoito” fazem parte da profunda rede de significados deste campo, reforçando ou depreciando os sujeitos envolvidos.
Esse novo indivíduo, precocemente produzido pelo novo coronavírus, é expressão de uma sociedade que incorporou, de modo radical, a tecnologia e os fluxos, cada vez mais líquidos, do capital desterritorializado que se movimenta sem limites e sem controles. Se está com fome, chama o Ifood, se precisa deslocar, pede um uber, se está carente, baixa um aplicativo de relacionamento, se está com tesão, manda um “nudes”, se está com baixa auto-estima, seleciona uma foto no smartphone, aplica o filtro no instagram e posta aguardando, ansiosamente, um “biscoito”. Se precisa realizar uma transação bancária, transfere pelo pix. Se está sem trabalho, oferece seus serviços na OLX.
Os novos clientes desse mercado parecem afirmar a sua potencialidade como forma de enfrentamento de uma das questões mais recorrentes em um mundo de indivíduos permanentemente conectados: a solidão. Os agenciadores deste mercado já realizam seus primeiros investimentos, apostando na terceirização das emoções para viabilização de encontros sob medida que correspondam às necessidades e exigências de cada cliente.
Mário Fellipe Fernandes Vieira Vasconcelos
Mestre e doutorando em Sociologia
Psicanalista em formação
As opiniões não refletem o posicionamento do Grupo Cidade de Comunicação.
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