Confira o artigo do professor Pedro Boaventura
Exposição Desenhos de Bandeira destaca a excelência artística de Antonio Bandeira
O artista cearense Antonio Bandeira (1922-1967) tem sido alvo de contínuo reconhecimento e valorização nas últimas décadas com sua obra cada vez mais exposta, comentada e atraindo a atenção de público e colecionadores. Em 2017, por exemplo, o Espaço Cultural da Universidade de Fortaleza exibiu uma ampla exposição que abarcavam toda a sua carreira. Na esteira dessa ascensão, a Sculpt Galeria inaugurou dia 25 de agosto a exposição Desenhos de Bandeira que oferece a oportunidade de conhecer uma vertente pouco conhecida desse artista, além de outras experiencias ligadas ao grafismo e a gravura.
A exposição é um recorte de um lote de obras que restou no atelier parisiense do artista, sob guarda do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Foi adquirido pelo empresário e colecionador José Miguel Monteiro Soares em 1973 e reunia trabalhos a óleo, guaches, aquarelas, desenhos além de um grupo de matrizes inéditas que deu origem a um álbum póstumo de gravuras editado pelo referido empresário. Inéditos desde sua aquisição, esse desconhecido Bandeira pode ser agora apreciado por ação do empresário e colecionador Rodrigo Parente com a curadoria de Kadma Marque e expografia de Tulio Paracampos.
À primeira vista, chama atenção a variedade de técnicas – desenhos a lápis, caneta de nanquim, aguada de nanquim, caneta esferográfica, aquarela, guache, serigrafia, monotipias – e também contextos – estudos, obras finalizadas, desenhos em correspondências – além dos suportes – variados tipos de papel e até folhas de jornal! Um visitante acostumado à uma típica exposição de Bandeira, composta de coloridas pinturas a óleo, se surpreende com esse conjunto heterogêneo que não relacionamos de imediato a ele. E de início, é preciso dizer que a carreira do Bandeira pode ser definida, grosso modo, em dois períodos. Até 1945 ele era um artista expressionista, na técnica e conteúdo, quando recebeu uma bolsa de estudos em Paris da Embaixada da França, onde ficou de 1946 até 1948, transformando-se no pintor abstracionista que conhecemos. Essa informação é importante para situar os trabalhos no espeço e nas transformações.
Começo pelo desenho de abertura que ilustra a chamada da exposição., em Autorretrato (fig. 1) que nos encara fixamente com um olhar forte, mas simultaneamente sensível, quase resignado, realizado em 1946, na fase expressionista. O rosto é formado por linhas fluídas e robustas que nem sempre completam os contornos, em diálogo com um acabamento delicado e localizado, feito de leves traços paralelos, como as sombras que se aprendem na academia. Esse contraste dialético é muito expressivo e revela um artista capaz de fixar fisionomias com espontaneidade e intensidade psicológica, mas também um clássico no acabamento que utiliza uma ampla escala de cinzas e aproveita a textura do papel como elemento gráfico do sombreado.
Na sequência, dois desenhos relativamente grandes são estudos para um painel encomendado pelo Instituto Brasileiro do Café, autarquia do governo federal extinta em 1989 (figs. 2 – a, b). Apesar de serem de 1950, momento consolidadamente abstrato, são de traço expressionista, estilizado, simulando uma figuração de estivadores ambiente e perspectiva (sacas, escada, navio). As figuras foram feitas com poucos traços, vigorosos zigue-zagues que transmitem tudo que é necessário; algumas nasceram de um gesto só, uma linha apenas (fig. 2 – b) e, nesse sentido, o desenho tem um ímpeto livre de índole abstrata. O motivo para esse flash back talvez seja a natureza oficial do comitente para qual a abstração não seria apropriada. Tal inflexão não é rara e nem diminui o artista; antes é uma oportunidade para que mostre competência em situações mais, digamos, acadêmicas. Portinari, Di Cavalcante e seu amigo e conterrâneo Zenon Barreto também realizaram painéis públicos nos quais se pode ver mais sugestão de perspectiva e espaço, arranjo tradicional de figura e grupos e outras estratégias no sentido de uma composição menos experimental.
Vizinho aos estivadores, três nus femininos contam outra história. Dois deles se parecem, são estranhamente sensuais e partilham a mesma técnica do autorretrato de abertura, embora mais livre (fig 3 – a,b). O terceiro, feito anos depois (fig. 3 – c), é bem estilizado e vigoroso, quase como uma abstração riscada com caneta. Nos primeiros, se vê a mulher; no outro, só a impessoalidade de um manequim. Aqui se percebe a transformação do desenho do artista de um expressionismo acolhedor e figurativo para a uma quase abstração fria e poderosa; uma heroína sem face que me remeteu à Iracema Guardiã (fig. 3 – d), e outros obras realizadas pelo seu amigo Zenon Barreto com quem partilha o mesmo caráter arquetípico.
Ao longo da exposição, há vários outros desenhos dos anos 50, que também experimentam com a estilização, mas por caminhos diferentes. Dois são figuras feitas com pincel e nanquim, vagamente caligráficas e de pouca expressividade (fig. 4 – a). Outros, ao contrário, misturam técnicas – pincelada de nanquim e caneta de nanquim – obtendo efeitos gráficos muito expressivos logo à primeira vista (figs. 4 -b, c). Um deles, talvez o mais inesperado, é um nanquim aquarelado feito de delicadas filigranas que atrai e desorienta com sua enigmática ambiguidade de figuração e abstração; um híbrido original cuja força de presença só se sente in loco (fig. 4 – d)
Nesse conjunto, alguns desenhos parecem mostrar as pesquisas que Bandeira fez no campo de outros artistas, datados entre 1947 e 1949, ou seja, bem no período da bolsa em Paris quando sua pintura se transformou, podendo-se ver claramente ecos de Klee (figs 4 – e, f) e Picasso (fig. 4 – g), no esforço de um pesquisador em se testar noutras linguagens. A experimentação contínua do pintor Bandeira, também se estendeu ao desenhista.
Outra oportunidade para acompanhar o processo de pesquisa e transformação de Bandeira são duas vistas de cidade, um tema recorrente em sua obra. A primeira é um grafite do período expressionista, 1947, uma perspectiva urbana figurativa, de traços livres, com ênfase de profundidade e volume (fig. 5 – a). A outra, 1950, está a meio caminho da abstração e se, por um lado, ainda se exibe referências a casas e telhados, por outro, sua composição não indica profundidade ou volume, as formas se embaralham e à primeira vista nos parece “apenas” um grafismo (fig. 5 – b). Posteriormente, Bandeira fez trabalhos com essa temática, já numa prática plenamente abstrata, onde a referência aos elementos urbanos foi completamente desconstruída em prol de uma expressividade mais emocional que visual, que dificilmente nos sugeriria alguma cidade sem a ajuda dos títulos. Na referida exposição da Unifor, esse terceiro momento podia ser apreciado em lindas pinturas (fig. 5 – c) completando o ciclo que os desenhos da exposição sugerem.
Na segunda parte da exposição, os desenhos completam a metamorfose para a abstração e aqui vale comentar uma questão. Para maioria das pessoas e, até certo ponto, tecnicamente também, desenho é uma obra sobre algum tipo de papel, envolvendo linhas, grafismos, sombreamentos e feito com uma variedade de objetos riscantes. Porém, essa definição tradicional atualmente divide espaço com uma visão mais ampla e na exposição vemos obras que tanto podem ser encaradas como desenhos não figurativos, como pinturas abstratas. Esse é o caso de vários nanquins, aquarelas, guaches e outras técnicas (figuras 6), incluindo uma inesperada serigrafia (fig. 6 -a), nos quais essa fronteira é ambígua; destacando-se uma obra feita pela repetição de um tipo de carimbo (fig. 6 – c) e uma aguada de nanquim, radicalmente minimalista e expressiva, um dos melhores trabalhos da exposição (fig. 6 – b).
Nos aproximando do final, encontramos obras muito peculiares. Primeiro, duas monotipias (impressão de um desenho em prova única; figs. 7 – a,b), experiências singulares uma vez que essa técnica não era frequente no autor. Uma delas é delicadamente matizada e rica de nuances em seu pequeno universo de 21 x 27cm (fig. 7 – a), um cosmo em miniatura que é recorrente em sua temática e se assemelha a várias obras maiores á óleo, batizadas com o termo ‘crepúsculo’, muito cuidadosas na sugestão de cósmicos efeitos luminosos.
Depois nos deparamos com 3 trabalhos desconcertantes pintados sobre folhas de jornal e revista entre 1956 e 57 (figs 7 – c, d, e). Dois deles são pequenos quadros – um mais informal (fig. 7 – c), outro mais geometrizado (fig. 7 – d) – encaixados ortogonalmente na diagramação da página, mas cuja relação com o suporte impresso é pouca, além do encaixamento mencionado. O terceiro (fig. 7 – e) são manchas que se espalham por toda a superfície, criando camadas de transparências, também sem muita relação com o fundo. Aqui talvez devamos lembrar que durante toda a década de 50 artistas de muito destaque, como Richard Hamilton e Robert Rauschenberg, realizaram obras com os mais variados materiais da indústria e do descarte, recortes de jornais e revistas inclusive, sendo uma das primeiras manifestações do que se chama de Pop Art. Talvez pintar quadros sobre páginas impressas de propaganda e notícias tenha sido o mais perto da Pop Art que um artista tão distante desse movimento como Bandeira pôde chegar.
Por fim, a estrela da exposição, uma rara coleção de gravuras em metal cujas placas originais estavam naquele lote comprado por Monteiro Soares (figuras 8). Em 1978 houve a oportunidade de imprimir as matrizes com a ação da artista gravadora Anna Letycia, amiga do colecionador. O resultado comoveu Anna que se referiu às obras “…não como uma gravura de gravador. Mas a de um mestre do desenho. Sutilíssimas! Sensibilíssimas!” Entre os primeiros que viram o conjunto gravado estavam os artistas Livio Abramo, Frans Krajcberg e Djanira da Motta e Silva, unânimes em endossar a opinião de Anna. O proprietário imprimiu um livro de arte com as 11 gravuras, acompanhado de poema encomendado a Carlos Drummond de Andrade e executado por uma excelente equipe curatorial e técnica. Realizou-se uma tiragem de 110 exemplares, sendo 100 numerados e 10 hors-commerce, com tiragem especial das gravuras em sanguínea. O exemplar da exposição é o de número 10.
De fato, as gravuras são delicadas e sutis, microcosmos de riscos, traços e pontilhados, cujas calibragens e efeitos de textura se arranjam de maneira nova e criativa a cada gravado. Apesar da variedade de composições, o conjunto é homogêneo e uma agradável fluência gráfica o padroniza. Pode-se ver o tema de cidade e casas em pelo menos três obras (figs. 8 -a, b); alusões á árvores e bosques (figs. 8 – b,c); além de figuras estilizadas (fig. 8 – d). Nesse sentido, as gravuras tem um nítido pendor figurativo, ainda que muito desconstruído. Novamente observa-se, nos temas e nas filigranas gráficas, a lição de Klee (figs. 8 -c), bem como a presença de Picasso nas figuras estilizadas (figs. 8 – d). É o pintor observando e se reinterpretando através de mestres cujas obras ofereciam muitas soluções de técnica e estilo para criação de gravuras em metal, empreita fora da prática de pintura que é lhe característica.
Pra encerrar, vale salientar duas gravuras que se distinguem como um par tanto pela composição de traços fluidos e livres, à exemplo da figura 5b, quanto pela temática que sugere casinhas, peixes, algas, ondas e jangadas flutuando em dança (figs. 8 – e). Vagando entre os elementos da composição, percebe-se um canto de saudade de um cearense, embaralhando lembranças numa confusão de imagens onde uma sereia alencarina, mimetizada nesse caos, aparece para proteger.
Assim, a exposição Desenhos de Bandeira nos descobre uma faceta relativamente desconhecida de sua produção, somada a satisfação estética de ver um conjunto de molduras realizadas pelo artista e artesão Takashi Kaminagai. Nos deparamos com uma diversidade inesperada, vislumbres de sua privacidade em desenhos de correspondências aos amigos, seu esforço de observar e absorver o melhor do ambiente artístico da época e nos impressionamos com a variedade de pesquisas estéticas, temáticas, técnicas e suportes que ressaltam o trabalho contínuo do artista em desenvolver linguagens e soluções; esforço que inspirou Drummond a desejar que “a mão certeira do caro pintor Bandeira”.
“[…] Encontre a cada dia
Essa fina alegria
De reinventar o mundo
Tornando-o mais profundo,
Mais claro e vaporoso.
Há no espaço gracioso
Em que teu sonho move
E liberta e comove
A essência dos objetos
Não sei que ultra-secretos
Enigmas e doçuras […]”
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